|
O Medico e o Monstro: Uma Leitura do Progressismo Latino-Americano e seus Opostos
SANTOS, FABIO LUIS, FELDMANN, DANIEL
ELEFANTE EDITORA
45,00
Estoque: 14
|
Na clássica novela de Stevenson, O médico e o monstro, o respeitável dr. Jekyll, após experimentos desastrosos, liberta seu cruel alter ego, sr. Hyde, o que faz da obra uma metáfora da natureza dual dos indivíduos. Tomando emprestada da literatura essa chave analítica, Fabio Luis Barbosa dos Santos e Daniel Feldmann discutem as contradições do progressismo na América Latina. Dividido em duas partes — a primeira concentrada no panorama geral do continente, a segunda dedicada ao contexto do governo Bolsonaro —, este livro procura elucidar como a política progressista fortaleceu uma lógica econômica incapaz de romper em definitivo com as práticas neoliberais e, diante disso, aprofundou as “fraturas sociais que suas técnicas de governo pretenderam mitigar”. Como resposta, fomentou-se a ascensão de uma onda conservadora ainda mais comprometida com os interesses dos “de cima” e ainda mais violenta com a resposta contestadora das ruas. Ao final, os autores identificam pontos valiosos para um futuro de nações emancipadas, comprometidas com soluções efetivas para os problemas populares e que rejeitem qualquer forma de “mal menor”.
***
O médico e o monstro consegue o feito de expor, de forma clara e original, as múltiplas formas do esgotamento da ilusão latino-americana de construir um pacto civilizatório com o capitalismo e seu pretenso progresso. Sua crítica à realidade nacional brasileira parte da lembrança, tacitamente esquecida por muitos, de que o Brasil faz parte da América Latina, ou seja, de que suas escolhas progressistas na primeira metade do século xxi devem ser lidas no interior do amplo arco dos “progressismos” que tomaram conta do continente e foram saudados como forças de transformação social — saudação que não engana os autores deste livro. Ao contrário, seu objetivo é fornecer o diagnóstico implacável de governos identificados com a esquerda que tiveram como função real procurar conter a lógica econômica de aprofundamento das fraturas sociais através do movimento contraditório de permitir o desenvolvimento de suas dinâmicas de acumulação, deixando intactos os privilégios de classe. Daí porque o livro precisa criar um vocabulário contraditório para expor uma contradição real que tais governos representaram.
Se descobriremos os sentidos de uma “contenção aceleracionista” que acaba por ampliar a desagregação social que procurava conter; de um “progressismo regressivo” que, na América Latina, não temeu flertar com a catástrofe (Venezuela), a tirania (Nicarágua) ou o messianismo (Brasil que espera o retorno de Lula); ou ainda de um “neoliberalismo inclusivo” que acreditava integrar classes vulneráveis através do consumo, enquanto criava uma legião de trabalhadoras e trabalhadores de renda degradada, é porque se trata de compreender como a experiência latino-americana exige a criação de conceitos mais aptos à sua realidade efetiva — uma realidade que nada mais é do que a lente de aumento das dinâmicas de retorno da acumulação primitiva e da violência desrecalcada que sentimos em todos os espaços do capitalismo global. Nesse sentido, ganha força a metáfora que dá corpo a esse projeto, a saber, a figura do médico e do monstro que ocupam o mesmo corpo, até que o último acabe por desfigurar por completo o primeiro. Pois não é possível curar com a mesma lógica que nos fez adoecer.
Nessa crítica consciente e avessa a qualquer forma de conciliação extorquida, o livro lembra não apenas como o neoliberalismo autoritário que vemos com força no Brasil é fruto de um colapso do sistema de expectativas mobilizadas pelo progressismo local; antes, trata-se principalmente de recordar que não se trata em absoluto de deixar a crítica para depois. Melhor seria compreender que as respostas aos problemas efetivos pelos quais passa o continente e nosso país ainda não foram encontradas. E só se encontra respostas adequadas quando não se ilude mais com respostas falsas ou com médicos que acabam virando monstros.
— Vladimir Safatle, na orelha
|
|
|